Essa semana vai rolar uma pausa nas dobradinhas do AE gastronômico com a Ana por um motivo mais do que nobre: enaltecer nosso destilado nacional e iniciar uma viagem mágica sobre história, processo de produção e riqueza cultural e sensorial da CACHAÇA!
Aliás, olha que idéia fantástica, Ana, nosso ingrediente da dobradinha é a própria cachaça. Excelente para diversas receitas culinárias, a cachaça não brilha somente nos balcões, mas também brilha nas cozinhas brasileiras.
Apelidada carinhosamente, e às vezes pejorativamente, de um sem número de palavras muito interessantes, essa bebida aromática e de notas vegetais e adocicadas esteve durante muitos anos relegada a balcões menos adornados, se podemos assim dizer, e definitivamente marginalizada da sociedade bacana e afortunada. Mas parece que o jogo virou, meus amigos.
Mé; Branquinha; Birita; Kátia; Água que passarinho não bebe; Cana; Pinga; Cangibrina; Purinha; Camarada; Cachimbada; Café-branco; Lindinha; Dengosa; Caxixi; Todi; Assovio de cobra; Leite de perereca; Faz-xodó; Tome-juízo; Espíito; Animadeira; Quero-mais; Paraty; Salinas; Samba; Limpa goela; Mim-num-há; Danada; Racha-peito; Chá de cobra; Quina de ás; Miolo de cana; Daquela que matou o guarda; Birinaita; Já-começa; Cafo-de-tigre; Esquenta corpo…
Para contextualizar, e começarmos a exaltar mais nossa propriedade destilada e cultural, sua produção tem íntima relação com o começo da colonização brasileira no nordeste do país, nas feitorias do nosso litoral. As feitorias eram casas de armazenagem de cana e nelas, acredita-se, já existia a destilação da cana nos engenhos de açúcar por volta de 1516 a 1526.
Segundo o site Mapa da Cachaça, essas datas são estimadas pois há registros de importação de açúcar em Portugal, vindo do Brasil, em 1526. Percebam, então, a grande possibilidade da bebida brasileira ter surgido antes do rum, que é hoje um destilado mais reconhecido do que a cachaça (levando ao absurdo de muitos países denominarem nossa cachaça de Brazilian Rum. Não sejam essas pessoas!). O rum, via de regra, é feito do melaço da cana e não do suco fresco da cana.
Fato é que os portugueses trouxeram a cana para o Brasil e a técnica de destilação usadas em aguardentes de uva em Portugal e não deixariam de produzir cachaça como subproduto da cana em locais próprios para produção de açúcar. Daí uma das hipóteses do surgimento da palavra cachaça: dos cachos da uva.
Mas nossa bebida é feita com o caldo puro da cana, a garapa. Antes de 24h depois da colheita deve ser extraída a garapa e ser acrescida de leveduras para produção do álcool através de fermentação alcoólica. Menos de 24h, pois a cana possui tanto açúcar em seu estado bruto, que as leveduras que existem no ar começam a fermentação da cana minutos após o seu corte.
Após a fermentação, as bebidas destiladas precisam passar pela destilação. Parece óbvio (porque é), mas fica aqui o óbvio dito, para que não tenhamos dúvidas. Toda bebida destilada um dia já foi fermentada.
No caso da cachaça a destilação pode acontecer em colunas de destilação ou em alambique de cobre. O número de destilações fica a cargo do mestre alambiqueiro, porém sabemos que cada destilação “limpa” mais a cachaça – tanto das impurezas quanto de aromas e sabores. No equilíbrio mora o segredo de milhares de receitas, assim como no tipo de cana utilizado, no cuidado do plantio, na colheita, na extração do sumo da cana e por aí vai. Detalhes que sempre fazem a diferença.
Na destilação de alambique, o mestre alambiqueiro determina, também, o fracionamento da cachaça, retirando dela o que se chama na destilação de espirituosos de cabeça e cauda, ficando somente o coração da bebida. Por analogia, podemos deduzir que cabeça é o resultado do início da destilação, cauda é o final da destilação e o coração é a parte nobre.
Saindo do alambique, tudo o que não é branquinha vai para maturação. Chamado também de estágio ou envelhecimento, esse tempo que a bebida passa em contato com a madeira de um barril permite uma troca maravilhosa de sabores além de reações que amaciam a pujança do álcool.
Na minha humilde opinião, é aqui que a nossa cachaça se destaca, e muito, de todo e qualquer outro destilado envelhecido na face dessa terra. Pense em qualquer um. Agora responda pra mim em qual barril essa bebida envelheceu. Deixa eu te ajudar. Carvalho, certo?
Pois no caso da cachaça nós temos dezenas de madeiras nativas que são utilizadas para maturar o líquido, além do carvalho que é bastante popular também: amburana, jequitibá (branco e rosa), amendoim, bálsamo, sassafrás, castanheira, cumaru, eucalipto…
E não para por aí. Existe ainda, na riqueza cultural e sensorial deste destilado brasileiríssimo, a arte da blendagem, que é uma mistura de diferentes cachaças, de diferentes maturações e madeiras – sem limite de quantas – criando uma sinfonia aromática e saborosa de acordo com a vontade do master blender, que é o responsável por criar esse perfil da bebida. Até o barril de uma madeira com tampa de outra pode ser utilizado para dar sabores diferenciados. Portanto, as possibilidades de sabores diferenciados são virtualmente inesgotáveis.
Para a coquetelaria, essa riqueza não poderia ser mais benéfica, porque possibilita infinitas harmonizações e criações de receitas, para além da ilustre, original e irrevogável caipirinha. Mas existem opções. Então vamos honrá-las.

Coloração da cachaça de acordo com a madeira utilizada (imagem do site mapa da cachaça)
Meu amigo e ilustre bartender mineiro, Thiago Ceccotti, traz em seu blog uma série de cocktails clássicos brasileiros com a nossa cachaça, além de uma série muito bem feita de Novos Clássicos Brasileiros, mixologistas que trazem bebidas novas com cachaça que se alastram pelo país.
Para finalizar, deixo aqui uma receita pra vocês de como aproveitar bem nossa querida cachaça:
# Passion Soul
- 50 ml de Ypióca 5 Chaves (ou cachaça envelhecida em amburana)
- 3 colheres de sopa de Maracujá fresco
- 1 colher de mel de abelha
- 15 ml de Limão
50 ml de Espumante Brut - Cereja Amarena
MODO DE PREPARO:
Gelar uma taça flute (taça de champagne) antes de iniciar o preparo.
Em uma coqueteleira, juntar os ingredientes e mexer para dissolver o mel, antes de colocar o gelo. Após a diluição, encher de gelo e bater bem. Servir os 50ml de Espumante na taça flute e por cima servir, coando, o líquido da coqueteleira. servir ao fundo uma cereja amarena. SAÚDE!